segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Teorias “Dissidentes” nas Relações Internacionais: conteúdo normativo, explicativo e as conexões com outras disciplinas.

____Em uma postagem anterior procurei trabalhar os enfoques epistemológicos das “teorias dissidentes”. Para ir além, proponho agora uma breve reflexão sobre suas: (1) diferentes capacidades explicativas; (2) propostas normativas distintas; (3) conexões singulares com outras teorias/enfoques/disciplinas. Sendo assim, esses tópicos serão explorados a seguir dentro de cada perspectiva teórica.
____A teoria crítica inicia sua trajetória nas relações internacionais na década de 80, tendo como principais expositores Ashley, Cox e Linklater. Essa perspectiva teórica procura estudar as mudanças estruturais do sistema internacionais – formação, manutenção e transformação. Ao estudar as mudanças da ordem mundial, Cox utiliza em sua proposta explicativa o materialismo histórico e alguns elementos do realismo antecedente a Morgenthau. Encontramos em seus trabalhos fortes críticas às “teorias tradicionais”, as quais são rotuladas como problem-solving. O autor nos alerta sobre a ligação entre conhecimento e política, uma vez que não há separação entre o sujeito e o objeto de estudo, “todo conhecimento é feito para alguém e para algum propósito”. Neste caso, o conhecimento gerado pelas teorias problem-solving carregam interesses e convicções que impossibilitam o surgimento de uma ordem social mais justa.
____A teoria crítica não procura apenas explicar ou descrever a sociedade, mas sim transforma-la. Ao colocar em cheque as estruturas do sistema internacional e sua relação com a comunidade política, a teoria crítica encontra nas exposições de Linklater argumentos de caráter cosmopolita que melhor promoverão liberdade, justiça e igualdade. Neste caso, a teoria critica normativa de Linklater não tem como proposito principal a explicação dos fenômenos (causa e efeito), mas sim avaliá-los desde o ponto de vista ético. A proposta da teoria crítica nos faz repensar as fundações normativas da política mundial. Além de incitar o debate sobre um mundo passível de construção, nos abre a possibilidade da “mudança” ser de acordo com os interesses de uma futura comunidade comunicativa universal.
____Maior desconfiança perante os interesses das teorias tradicionais são levantadas pelos acadêmicos pós-modernos. O pós-modernismo é um pensamento oposto ao projeto de modernidade e possui influencia de outras disciplinas como a linguística e a genealogia. Acadêmicos adeptos a este pensamento negam a possibilidade de conhecer o mundo e teorizar sobre ele, e desconfiam dos esforços “tradicionais” em encontrar verdades universais. Com esta postura anticientífica, o pós-modernismo procura nas análises de textos, discursos e narrativas a possibilidade de aproximação com o mundo. Os próprios autores deste pensamento não admitem a probabilidade de produzir conhecimento verdadeiro, não seguem critérios de demarcação ou metodologia rigorosa, e nem primam pela qualidade de suas fontes, o que coloca em cheque suas capacidades em propor explicações substantivas. A proposta normativa do pós-modernismo se concentra na valorização da diferença e no reconhecimento e dos outros tipos de saberes. No entanto, ao aplicarem o método de desconstrução sobre determinado significado, não procuram desenvolver uma agenda normativa clara sobre o futuro, ou de como seria este mundo pós-moderno. Observamos assim, que estes autores desconstroem muito e constroem (procuram construir) pouco.
____Podemos encontrar melhor consistência explicativa e normativa nas teorias de gênero sobre as relações internacionais, sendo que o maior destaque se dá aos trabalhos feministas. O feminismo é um projeto politico que visa eliminar as situações de exploração, opressão e desigualdade que imperam em nossa sociedade patriarcal. Por ser um projeto político, está carregado de elementos normativos, aproximando-se desta maneira de perspectivas liberais, socialistas/marxistas, ou radicais. Neste sentido, os autores procuram em seus argumentos normativos a superação das limitações impostas pelo uso do positivismo. Para deixar claro, o feminismo também apresenta pluralidade em sua concepção epistemológica, partindo de estudos mais empíricos até os que se aproximam das percepções do pós-modernismo. As diferentes perspectivas destacadas procuram desenvolver uma agenda complementar, fortalecendo a proposta explicativa do feminista para as relações internacionais.
____Diferente do feminismo, a sociologia histórica é mais moderada na composição de suas críticas ao positivismo. Por um lado, encontramos a escola de Wallerstein (sistema-mundo) que propõe criticas assertivas sobre o positivismo, por outro lado nos deparamos com a sociologia histórica “neo-weberiana”, muito mais científica e “positiva”. De qualquer maneira, a sociologia histórica analisa de maneira crítica alguns períodos específicos da história, sendo que suas principais contribuições partem dos estudos sobre a formação do Estado-nação e o sistema de Estados em que se organizam as relações internacionais. Além da análise histórica e sociológica, os autores que trabalham sobre esta perspectiva utilizam-se das disciplinas de economia, antropologia, ciência política, entre outras. A proposta explicativa da sociologia histórica não procura renunciar os métodos científicos, pelo contrário, seus estudos estabelecem os mecanismos de causa e efeito que determinam a simbiose entre o Estado-nação e o capitalismo, entre o sistema político e o sistema econômico. Sobre a dimensão normativa, a teoria procura destacar as desigualdades existentes através da hierarquia, na ótica da separação centro-periferia. Os autores que expõem esta abordagem destacam um otimismo perante a possibilidade de mudanças do sistema internacional, porém não procuram estabelecer uma proposta normativa muito menos prever se a suposta mudança é no sentido de maior justiça ou maior desigualdade.
____O estudo das estruturas do sistema internacional também possuem adeptos no construtivismo. Seguindo o mesmo conteúdo interdisciplinar e com influencias da sociologia e da história, o construtivismo é um programa de investigação constituído sobre as carências percebidas nas “teorias tradicionais”. O construtivismo não é uma teoria, e também não apresenta um programa de pesquisa homogêneo, pois seus autores bebem de fontes diferentes, desde abordagens mais racionalistas até as premissas da hermenêutica interpretativa, e por vezes combinando explicação e interpretação. O tema central da problemática construtivista é a mutua constituição das estruturas sociais e dos agentes nas RI. Neste sentido as identidades e os interesses dos atores influenciam o comportamento e o resultado das ações dos demais atores, que não estão condicionadas somente pela estrutura (neorrealismo) ou pelos processos e instituições (neoliberalismo). O construtivismo traz para o debate de RIs o papel das ideias, do pensamento e dos valores, alertando sobre a conscientização humana em questões internacionais. A comunidade epistêmica, traduzida como um grupo de “profissionais habilitados”, seria capaz de propor novas alternativas a realidade social das relações internacionais, num sentido de maior justiça.
____Nota-se, que todas as teorias “dissidentes” possuem claramente o elemento crítico em suas análises, desde abordagens mais radicais (pós-modernismo) aos questionamentos mais moderados (construtivismo). Além da crítica, as teorias/escolas procuram dialogar e importar de outras disciplinas conceitos e métodos que agreguem conhecimento no debate das relações internacionais. Por possuírem temáticas distintas e muitas vezes específicas, a comparação de conteúdo se torna tarefa complicada. No entanto, acredito que alguns pontos importantes, como as ligações com outras disciplinas, os conteúdos explicativos e normativos foram analisados.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

As relações internacionais sobre o olhar das teorias “dissidentes”: questionamentos epistemológicos

_____O campo de estudos das relações internacionais é altamente dinâmico, sendo que o próprio objeto de estudo está em constantemente transformação, e alias, não há consenso entre os acadêmicos nem sobre qual é o objeto de estudo das relações internacionais. Se o consenso não existe sobre o objeto de estudo, é claro que o mesmo não se faz presente na epistemologia e metodologia deste campo interdisciplinar. Neste sentido, a palavra que melhor caracteriza as relações internacionais é a diversidade, tanto em termos de concepção quanto de construção teórica.
_____Com tantas abordagens, escolas e teorias diferentes nas relações internacionais, seria um “crime” contra seus autores tentar classifica-las de maneira rigorosa. Por outro lado, por questões organizacionais e didáticas, se faz necessário certa divisão. Sendo assim, podemos efetuar uma distinção entre: “teorias tradicionais” (hegemônicas) e “teorias dissidentes”. Esses dois “blocos teóricos” não representam homogeneidade, mas sim, alguns elementos teóricos similares. Desta maneira, tomaremos o cuidado de não “calar” os diferentes discursos apresentados entre as teorias que se situam em cada um destes “blocos teóricos”. Feito tal divisão, e informados sobre os riscos da mesma, podemos dizer que as teorias mainstream (Realismo, Liberalismo, e suas vertentes) são do bloco das “tradicionais”, já a teoria crítica, teorias de gênero, sociologia histórica e os pós-modernos fazem parte das “teorias dissidentes”. Algumas perspectivas singulares, como o caso do construtivismo e da Escola inglesa, não se faz possível aplicar tal divisão, já que suas agendas de pesquisa perpassam a divisão anterior.
_____Focamos agora nossa análise sobre as “teorias dissidentes” e suas similaridades. O elemento mais comum entre estas teorias é a negação as “teorias tradicionais”, em especial ao neorrealismo. Esta negação é de suma importância, pois não rejeita somente a metodologia adotada pelas “teorias tradicionais”, mas sim a epistemologia – a maneira de compreender, decifrar, e explicar o mundo. Neste sentido, o elemento comum entre os “dissidentes” se torna a crítica ao racionalismo ocidental (positivismo-empirismo), que pode ser melhor apresentada a seguir: (1°) questiona-se a possibilidade de formular verdades objetivas e empiricamente falseáveis sobre o mundo social; (2°) seria o conhecimento fundamentado em bases reais? – esta dúvida é constante entre os pós-modernistas; (3°) até que ponto a ciência é neutra, se é que a neutralidade existe. Essa crítica ao racionalismo fez com que tais questionamentos apresentados pelas “teorias dissidentes” fossem rotulados como “reflexivistas” por Robert Keohane.
_____Novamente chamo a atenção ao grau de “reflexivismo” presente em cada “teoria dissidente”, o qual não representa a homogeneidade do todo. Há teorias que buscam maior ruptura com a epistemologia racionalista ocidental, como é o caso do pós-modernismo, já outras teorias como o construtivismo, possuem algumas correntes que procuram o dialogo e a construção de “pontes” entre as teorias “tradicionais”. Em maior ou menor grau, o “reflexivismo” está presente na teoria crítica, no feminismo, no pós-modernismo, na sociologia histórica e em algumas correntes do construtivismo.
_____Além da crítica comum ao racionalismo ocidental – e que ao mesmo tempo é a grande diferença perante as teorias tradicionais, as teorias “dissidentes” apresentam outras similaridades: (1) a metodologia utilizada é baseada em interpretações históricas e textuais – além de uma notável interdisciplinaridade; (2) as teorias possuem uma proposta normativa presente – que será tratado mais adiante; (3) os fenômenos das relações internacionais são socialmente construídos, portanto, passiveis de transformação; (4) as “teorias dissidentes” fornecem espaço para assuntos “marginalizados” pelas teorias tradicionais; (5) questionam a hegemonia do realismo nas relações internacionais; (6) e apontam os limites epistemológicos e éticos das teorias tradicionais.
_____Feita esta análise, fica claro que os elementos comuns ressaltados entre as “teorias dissidentes” são em grande parte críticas as “teorias tradicionais”. Essas críticas se fazem mais presentes após as mudanças estruturais do sistema internacional nas décadas de 1980 e 1990, em especial o final da guerra fria. Este período de crises e transformações permitiu maior abertura a discussões de assuntos até então marginalizados pelas teorias hegemônicas ou tradados como low politics. Como exemplo, podemos citar os estudos sobre movimentos de migração, o papel do gênero nas relações internacionais, meio ambiente e desastres naturais, sociedade civil global e representatividade, entre outros. Estes assuntos começaram a ser debatidos com maior seriedade e repercussão, atraindo cada vez mais os acadêmicos da área de relações internacionais. Essa “onda” crítica também é sentida no Brasil, pois é neste mesmo período de abertura democrática (final dos anos 80) que se iniciam maiores debates sobre a representatividade da sociedade civil nas decisões de política externa, aflorando com intensidade a discussão politica externa versus política pública.